Cauê Teixeira, discente do curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais unidade Frutal/MG.
Divulgado na mídia e discutida no Senado Federal, o anteprojeto de Reforma do Código Civil prevê uma série de mudanças estruturais na composição e costumes da vida comum do brasileiro. De início, pode-se trazer que a proposta revisional do Código Civil recoloca em discussão o lugar do cônjuge ou companheiro na sucessão, especialmente em relação a eminente retirada do cônjuge do rol de herdeiros necessários, podendo ainda trazer que, o entendimento jurisprudencial do STF, equiparou em 2017, os regimes sucessórios do casamente e da união estável.
Tal mudança impacta diretamente no planejamento sucessório, a proteção patrimonial do sobrevivente e a segurança jurídica das famílias. Por um lado, temos o fortalecimento da autonomia privada e a liberdade para estipular, já por outro, pode inflamar as vulnerabilidades quanto ao status de dependência financeira da mulher nas relações conjugais, exigindo cautela na atualização do Código Civil.
Em síntese, o presente trabalho examina fundamentos normativos e efeitos práticos das possíveis alterações a luz do entendimento doutrinário civilista, adotando o método dedutivo, com a análise do anteprojeto e de precedentes paradigmáticos, para por fim, contrastar argumentos favoráveis e contrários às possíveis mudanças, impactos jurídicos e sócio econômicos.
A presente pesquisa fez uso do método de abordagem dedutivo no intuito de explorar a problemática levantada, isto por meio do levantamento bibliográfico e documental de materiais relevantes para o universo jurídico, como artigos, periódicos, notícias e, principalmente, pelo acompanhamento do anteprojeto da Reforma do Código Civil, em trâmite no Senado Federal.
O anteprojeto de reforma do Código Civil e o direito sucessório
Amplamente divulgada desde setembro de 2023, fora constituída uma comissão de reforma do Código Civil. Insta frisar que, apesar de alterar boa parte da redação original, a proposta não se trata da elaboração de um novo diploma normativo, mas da atualização da codificação atual em atenção às mudanças sociais ocorridas nas duas últimas décadas, desde que vigente. Dessa forma, desde a promulgação do Código em 2002, inúmeras foram as transformações na sociedade brasileira, com o surgimento de novos dilemas que necessitam de respostas não previstas na lei, de modo que:
A contribuição da Reforma do Código Civil, como em toda intervenção legislativa desse porte, associa-se ao atendimento de demandas emergentes na sociedade, de modo a tornar o dado normativo alinhado com a evolução das práticas sociais. Mostra-se de fato compreensível que o Código Civil, por sua enorme extensão normativa, deva ser atualizado, passados mais de 20 anos de sua vigência, particularmente na sociedade contemporânea, com transformações tão velozes e profundas. (Tepedino, 2024, p. 11).
Hoje, são discutidas questões como novas configurações familiares, relações socioafetivas, a ampliação da proteção sobre os direitos dos animais, novas modalidades de contratos, a incorporação das tecnologias digitais nas relações privadas e, o que se discute com enfoque neste trabalho – as mudanças no regime das sucessões e seu impacto na condição dos cônjuges e companheiros enquanto herdeiros.
Nessa perspectiva, no relatório final do anteprojeto da reforma, constam mudanças que visam aumentar a abrangência da autonomia privada do indivíduo em suas relações interpessoais, isto é, boa parte da justificativa que baseia as alterações mais polêmicas do projeto são pautadas na limitação do poder de interferência do Estado nas esferas íntima e negocial do cidadão.
Dentre algumas das novidades, está a alteração da condição do cônjuge enquanto herdeiro necessário (art. 1.845, CC/2002), que, ao lado dos ascendentes e descentes diretos, hoje ocupa posição dotada de ampla proteção legal no direito sucessório. Isto posto, a discussão em voga se aloca na proposta de exclusão do cônjuge do mencionado rol obrigatório, condicionando o recebimento da sua parte da herança à faculdade do testamentário. Nos termos da pretensão reformista: “Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes. ” (Salomão, Luís. Et al, 2024, p. 220).
Diante do quadro apresentado, discutir-se-á os impactos dessa mudança legislativa e suas possíveis implicações sociais, bem como o embate doutrinário travado entre diferentes nomes do Direito Civil contemporâneo acerca da alteração.
A situação dos cônjuges e companheiros enquanto herdeiros necessários
Para se destacar a relevância da discussão tratada, necessário compreender que a herança se trata de direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988, sendo assim defendida na visão do doutrinador Flávio Tartuci. In verbis:
A herança é o conjunto de bens formado com o falecimento do de cujus (autor da herança). Conforme o entendimento majoritário da doutrina, a herança forma o espólio, que constitui um ente despersonalizado ou despersonificado e não de uma pessoa jurídica, havendo uma universalidade jurídica, criada por ficção legal. (Tartuci, 2025, p. 1716).
Por essa razão, existe amplo debate entorno da necessidade ou não da tutela e proteção da parcela patrimonial reservada à pessoa do cônjuge ou companheiro nas sucessões. Aqui, necessário acrescentar, para fins de elucidação conceitual, que desde 2017, na ocasião do julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) n. 878.694 e 646.721[1], o Supremo Tribunal Federal equiparou os regimes de casamento e união estável quanto aos direitos e garantias sucessórias, o que vai ao encontro do debate consuetudinário travado na sociedade, qual seja: de que a constituição familiar e das relações afetivas não mais se encontram hegemonicamente centralizadas no casamento.
Assim, em atenção às constantes mudanças sociais, em especial às relações de gênero, com a gradual crescente da valorização feminina em posições de poder e no mercado de trabalho (eis que, outrora, por longa construção histórica, vigorava expressiva hegemonia masculina), hoje, homens e mulheres são contemplados com a possibilidade de serem detentores e provedores do patrimônio familiar, vez que não mais impera, ao menos normativamente, o pátrio poder. Inclusive, tal observação se encontra nas razões do relatório final do anteprojeto de reforma do Código Civil:
Diante da progressiva igualdade entre homens e mulheres na família e do ingresso da mulher no mercado de trabalho, bem como do fenômeno cada vez mais crescente das famílias recompostas, foi preciso repensar a posição do cônjuge e do companheiro na sucessão legítima, chegando-se à conclusão de que eles não deveriam mais figurar como herdeiros necessários, nem muito menos concorrer com os descendentes e ascendentes do autor da herança. Importante destacar que grande parte das sugestões recebidas nos canais disponibilizados pelo Senado Federal e por outras instituições tiveram por objeto afastar do cônjuge a condição de herdeiro necessário e de herdeiro concorrente. (Salomão, Luís. Et al, 2024, p. 305).
Dessa forma, se aprovado e mantido no teor de sua concepção, o projeto de reforma do Código Civil trará mudança controversa ao regime de sucessões. A par do debate, a comunidade jurídica se divide entre aqueles que defendem a alteração sob o viés da ampliação da autonomia privada e entre os que compreendem que a mudança é preocupante, ao passo em que pode ocasionar o aumento de situações injustas às mulheres sob a perspectiva de gênero, vez que, proporcionalmente, serão a parcela social mais afetada pela facultatividade da distribuição sucessória.
Embate doutrinário acerca da alteração do art. 1845 do Código Civil
A solução encontrada pela comissão, de remover o cônjuge dessa categoria, é discutida em confrontos doutrinários, eis que, em razão da maneira como a nossa sociedade é constituída, a família encontra sustento de quilate constitucional, sendo assim definida no art. 226, caput da CRFB/88: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 2025). Nesse sentido, a proteção do cônjuge não se trata apenas de um sistema para manutenção da instituição casamento, pois assegura à família e à mulher especial proteção legal. Por essas razões, discute-se as consequências da alteração, sobretudo se analisado o retrocesso ao direito das mulheres, conforme alerta a civilista Maria Berenice Dias:
A solução encontrada pela Comissão foi a de remover o cônjuge dessa categoria, deixando-o apenas como herdeiro legítimo. Então, tanto o cônjuge quanto o companheiro não terão mais direito à concorrência sucessória, nem à herança, caso o falecido tenha descendentes.
Essa mudança representa uma vulnerabilização do cônjuge, que antes tinha uma posição de destaque no Código Civil atual. É importante lembrar que essas situações afetam principalmente as mulheres, que, em geral, vivem mais do que seus maridos ou companheiros e, muitas vezes, não são as detentoras do patrimônio. Considero essa alteração preocupante, pois tende a gerar muitas injustiças. (Dias apud Ministério Público do Estado de Mato Grosso, 2024, s.p.).
A crítica feita ancora-se em análise do perfil da maioria das famílias brasileiras, nas quais os homens ocupam o papel de chefes de família e detém maior controle do patrimônio. Por esse viés, a melhor solução seria conservar redação do atual código, no entendimento de que o Estado deve preservar a instituição familiar, os direitos das mulheres e zelar pelos Princípios constitucionais da igualdade e do não retrocesso, ou vedação ao retrocesso. Nesse sentido, sobre a situação das mulheres, escrevem Fontineles e Pavelquesi (2025):
(…) a mulher, em média, ainda possui rendimentos menores que o homem; tem menos oportunidades de crescimento no mercado de trabalho; dedica muito mais tempo que os homens aos afazeres domésticos e ao trabalho de cuidado e, com um possível retrocesso em relação aos direitos conquistados, a mulher, perderá a proteção alcançada no âmbito dos direitos sucessórios, correndo o risco de ficar desamparada ou de ter uma piora significativa na sua qualidade de vida, deixando de ter direito àquilo que ela ajudou a construir a partir da dedicação aos trabalhos domésticos e de cuidado em quantitativo desproporcionalmente superior à dedicação dos homens nessas mesmas áreas. (Fontineles; Pavelquesi, 2025, p. 06).
Em remate, entende-se que a atual definição do Código Civil se presta a assegurar direitos das pessoas em uma relação familiar e conjugal, entendendo que o grupo familiar é a base da sociedade e que o patrimônio constituído em conjunto deve ser necessariamente amparado e dividido igualmente no regime de sucessão. Nesse sentido, para parte da doutrina, mormente na visão da jurista Maria Berenice Dias, a reforma pode trazer complicações às mulheres, principais prejudicadas nesse contexto.
A eventual exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários reformula o equilíbrio entre proteção familiar e autonomia privada, mas, sem ressalvas, a medida tende a aumentar a litigiosidade e a fragilização do sobrevivente em possíveis cenários de dependência financeira, especialmente envolvendo as mulheres. Uma reforma desse calibre só seria constitucionalmente aceita se não recriasse hierarquias entre modelos de famílias, e tampouco pode retroceder sobre quem seria mais vulnerável. Portanto, a alteração do art. 1.845 do CC dever conter um pacote mínimo de proteção do cônjuge, com o foco na preservação ampliada do direito real de habitação do sobrevivente e regras de transição patrimonial. Assim, para ser justa, a reforma precisaria conciliar a autonomia privada e a tutela efetiva do cônjuge, de modo a evitar que a autonomia se transforme em desamparo e agrave a desigualdade de gênero, pois só assim cumprirá sua finalidade sem retaliar os direitos à dignidade do parceiro/companheiro que permanece em vida.
Cônjuge necessário; reforma do Código Civil; sucessões; desigualdade de gênero.